Faixa

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quinta-feira, 10 de junho de 2021

O Menino Açoriano: algumas memórias de um espaço-tempo distante (Parte 1)

 

Arte: Leo Nogueira Paqonawta (2021)

O Menino Açoriano: algumas memórias de um espaço-tempo distante

Manuel acordava tão cedo que, nem o galo, morador mais barulhento em seu quintal, havia começado a cantar para saudar o Sol que dali a pouco nasceria lá longe, no mar. Ele sabia muito bem o que deveria fazer: se levantar pulando, depressa, e correr atrás do pai que já se preparava para o trabalho do dia. Era sempre assim, todo dia, menos aos domingos. 

Joaquim já estava na faina de preparar os apetrechos para levar à pesca junto com outros companheiros das redondezas. Maria já havia acendido o fogão de lenha, e esquentava umas misturas de folhas de sua horta para acompanhar o pirão e uns nacos de peixes, e terminar de assar uns bolinhos de mandioca para que seu marido levasse para o dia. E cantarolava suas canções que sua própria Mãe a havia ensinado.

Os olhos de Manuel ainda estavam cheios de seus sonhos da noite anterior. Enquanto bocejava e despertava aos poucos, enchia o bucho com a cumbuca de madeira que sua Mãe havia enchido de comida até à borda. E sorria sozinho com as lembranças da madrugada passada...

Ele se via bem no alto de um navio bem grande, e lá embaixo muitos homens se mexendo pra lá e pra cá puxando cordas, redes, carregando caixotes, assobiando e cantando juntos umas canções que lhe pareciam bem familiares... Eram piratas! 

Arte: Leo Nogueira Paqonawta (2021)

– Anda, Ixtepô! Tu não vês que já quase está a amanhecer? Queres mofar como a pomba na balaia? Avia! Depressa! Senão, nada de comida na mesa, nem para levar à Vila e aos Oficiais da Fortaleza! Prometi ao Capitão os melhores peixes! Fique ligeiro, seu molenga! – gritava o Pai, interrompendo de supetão os seus devaneios. E dali a pouco já estavam puxando a canoa a caminho do mar... 

Os companheiros do Pai faziam o mesmo, e mais um pouco os homens já haviam se lançado ao mar. O Sol já começava a aparecer, e a meninada ficou por ali espiando a cena, para depois começar uma gritaria em torno dos achados pela areia, trazidos pelas ondas da tempestade dos dias anteriores. 

Cada qual se gabava daquilo que encontrara, mas Manuel ficou quietinho, quietinho, guardando escondido um objeto que descobriu, bem seguro dentro de um pequeno saco pendurado aos ombros. E voltou ao casebre para cuidar dos bichos, ajudar a Mãe na horta e preparar algumas coisas para a festa de Páscoa da próxima semana. 

Seus olhos brilhavam, muito mais agora do que com o que se lembrava de seus sonhos. Lá dentro do saco, algo cintilante atiçava a sua imaginação... e ele esperaria seu Pai voltar para revelar o seu achado.


Clássica imagem de La Pérouse.
Navegador francês, mostra um panorama de Desterro em 1785, com a presença de uma europeia e uma negra. Acervo Carlos Damião



O Menino açoriano e um mistério a ser desvendado... 

As brincadeiras e tarefas das Crianças naquele dia foram muitas e, Manuel estava bem cansado e sonolento quando a tarde já ia pelo meio e os homens voltavam do mar com o produto de suas pescas. 

Ainda teriam a trabalheira de carregar os cestos cheios de peixes, feitos de tal modo que, os ramos trançados quase que não deixavam passar nem uma gotinha de água. Seu pai Joaquim havia aprendido isso com os antigos habitantes da Ilha, que chamavam desde há muito de “guaranis”. 

Tais apetrechos mantinham os peixes ainda vivos e, certamente bem frescos para a hora de cozinharem ou assarem no fogão improvisado do casebre onde moravam. Do mesmo modo, levariam peixes vivinhos para a Vila dos Oficiais e o respeitado Capitão. 

O Menino Manuel sabia muito bem o que fazer: penduravam balaio por balaio na parte do meio de um pedaço de pau bem forte, e duas pessoas os carregavam, dividindo o peso. Mas, isso de carregar os peixes de tal modo, foi o Avô dele que mostrou como fazia... 

O Velho Manuel deu o mesmo nome àquele neto que ele gostava tanto, porque via nele uma inteligência e curiosidade pela vida bem diferente das demais Crianças das redondezas. Ele não tinha nem 50 anos e ainda era forte para o trabalho, e sabia de coisas muito interessantes de seus estudos, e também curiosidades do que aprendeu lá nas Ilhas dos Açores. Chegou à Ilha com o filho Joaquim ainda pequeno, e outra penca de Crianças que tivera com sua esposa, Maria do Rosário, a Avó do pequeno Manuel. 

Foi nessa lida de carregar e colocar os peixes num laguinho salgado que o Menino Manuel teve um estalo das ideias e, ao invés de revelar o segredo do que achara de manhãzinha para o Pai, agora resolvera confidenciar ao Avô, considerado um Velho muito sábio ali naquela pequena comunidade. 

Mas o Menino Manuel estava tão cansado depois do dia de trabalho, que após comer o que sua Mãe havia preparado para o rancho de todos, deitou-se numa rede num dos cantos do casebre e, com os olhos quase se fechando. Porém, ouvia de longe a voz do Avô contando histórias cheias de saudades, enquanto ia como que se desligando da realidade de seu redor... 

Ainda se sentia pela Ilha os calores do verão que mal terminara, e soprava um ventinho gostoso com cheiro de mar, tão pertinho deles. O céu bem limpo de nuvens brilhava cheio de estrelas. Manuel já dormia, agarradinho com seu achado bem escondido, amarrado à sua cintura... e escutava outros sons... 

Gritos de terror saíam das gargantas, misturados com a água salgada que os ventos da imensa tempestade espalhavam por todos os lados! O navio batera num rochedo e já afundava, mastros se quebravam e velas rodopiavam pra lá e pra cá, espatifando cabeças e esmagando os corpos dos marinheiros que tentavam se segurar em alguma coisa, enquanto tudo sacolejava violentamente! 

O Comandante estava aterrorizado, porque naquele minúsculo baú que tentava segurar, com todas as suas forças, existia um tesouro que lhe compraria terras, além de um belíssimo castelo com o qual sonhava em morar com sua bem-amada noiva em Espanha. Ele que vivia para assaltar outros navios e roubar suas riquezas, já havia escondido outros tesouros, espalhados em muitos lugares por onde passavam durante suas viagens de pirataria pelos mares do Sul, do Norte, do Leste e do Oeste ao redor do mundo que havia velejado e conhecido. 

Dentro daquele bauzinho se encontravam os mapas de onde havia escondido fortuna imensurável, além de anéis, colares, moedas de ouro, e pedras preciosas de valor incalculável, de fazer inveja a reis e rainhas. 

O comandante teve o cuidado de fazer tal baú com uma madeira que boiava, e não tinha nenhuma aparência que revelasse o valor de seu conteúdo. Passaria desapercebido em qualquer lugar, como se fosse uma caixinha de nada, de guardar troços e trecos sem importância nenhuma. Era uma maneira de não despertar atenção, cobiça, inveja de ninguém. 

Raios cortavam os céus em todas as direções fazendo um barulho terrível, ao mesmo tempo em que o mar revolto parecia enlouquecido numa dança de vai-e-vem macabra. Ali perto, enormes rochas se destacavam da escuridão em meio aos relâmpagos fantasmagóricos. O naufrágio era certo! 

Um estrondo enorme se fez ouvir: cataplan! O barco havia se rachado ao meio, depois de bater nuns rochedos para acabar de se despedaçar todo. E o impacto fulminante fez com que os ainda poucos mercenários acabassem por morrer estatelados nas pedras que pareciam cuspir espuma. No meio da tempestade horrível o bauzinho precioso se desprende das mãos do Comandante Pirata, e é levado pelas ondas que o sacolejavam para bem longe daquele lugar sinistro... 

E num pedaço do pesadelo que parecia o final de seu sonho, o Menino Manuel via e ouvia um homem contar e anotar num pedaço de papel, enquanto uma vela bruxuleava em meio à escuridão da cabine de um navio que balançava suavemente. Depois, guardou o papel em uma desprezível caixa de troços e trecos, cheias de pedras preciosas e o belíssimo camafeu de ouro e madrepérola esculpido com o rosto de sua Bem-Amada Señora: 

PLAYA DEL SUR DE LA ISLA DE SANTA CATALINA 

X 

3.500 DOBRÕES DE OURO

85 SACOS DE FLORINS DE OURO

120 SACOS DE FLORINS DE PRATA

13.500 RÉIS DE PRATA

16.000 RÉIS DE OURO

70 QUILATES DE DIAMANTES

100 QUILATES DE SAFIRAS

30 QUILOS DE PÉROLAS


Vista da Ilha de Santa Catarina, Nossa Senhora do Desterro, 1785.
Autor: Duché de Farney.


O Menino açoriano no meio da noite estrelada...
 

“Señora Maria Leonor... Maria Leonor... Maria Leonor”... 

Como se estivesse caindo do mais alto mastro do navio para se estatelar lá embaixo no convés, o Menino Manuel tentava se agarrar ao que quer que fosse para evitar a queda que lhe partiria ao meio, e sabe-se Deus em cima do que se espatifaria, tal era a confusão que a tremenda tempestade provocava. 

Tchibummmmm... Ele caiu! 

O Menino Manuel acorda todo aturdido sobre o chão de sua choupana. Havia caído de sua rede bem no meio da noite, e todos dormiam, cada um no seu cantinho, exceto seu Avô. Com o espaço da choupana iluminado apenas pelas brasas do fogareiro de lenha, olhou ao derredor e se levantou para procurar o Velho Manuel. 

Lá estava o Sábio Ancião, silencioso e solitário dentro da escuridão, contemplando as estrelas e murmurando, quase silenciosamente, suas antigas orações da infância e juventude lá pelas bandas de uma das 9 ilhas açorianas: a saudosa Ilha Faial com sua cidadela Horta. 

- Avô? – chama o Menino esfregando os olhos do sonho e as costelas do tombo... 

- Oh, Menino! Bem que te vi remexendo muito em sua rede! Tivestes outro sonho cheio de mistérios? Conte mais este para este velhinho que vos ama muito! 

Sorrindo com confiança e dando alguns bocejos, ambos se puseram a conversar daqueles dois sonhos. E, assim, o Menino criava o cenário para, enfim, revelar seu achado do dia anterior. 

Somente o zumzumzum dos dois era ouvido enquanto o mar quase que lhes chegava aos pés para poder escutar tais segredos. A noite estrelada resplendia nos céus, enquanto as 5 estrelas do Cruzeiro do Sul piscavam, como testemunhas daqueles dois diminutos seres entabulando um diálogo sobre a areia... 

De repente, um pontinho de luz celeste risca o céu desde acima de suas cabeças até o lado de onde o Sol nasceria dali a pouco. Os dois Manuéis observam aquilo extasiados, depois se olham um no olho do outro, abrem um largo sorriso e se dão num abraço apertado... 

O Menino retira de sua roupa o tal objeto, segura a mão do Avô, e nela deposita aquela coisa que cintilava como as estrelas.



Dobrão de Ouro.
Colônia, D. João V - Casa da Moeda de Vila Rica (Minas Gerais); 20.000 réis 1724,
letra monetária MMMM; ouro 916,6 ‰, 53,78 gramas, Ø: 38 mm.


O Menino tremia de emoção quando depositou na concha da mão de seu Avô aquela moeda dourada, relativamente pesada, brilhante, reluzente. Por um instante, o Velho Manuel fechou seus dedos sobre ela, e ficou em silêncio por mais um pouco, olhos cerrados, respiração lenta, mas o coração batendo descompassado e forte. 

O Pequeno Manuel se deixou ficar ali, porém muito mais aflito, que de tal maneira podia se ouvir os dois corações pulando dentro do peito, querendo saltar pela boca e se transformar em palavras. 

Foi o Velho Manuel que, depois de um looooongo suspiro, disse algo primeiro e surpreendentemente calmo: 

- Meu Neto querido, achastes algo que meu Espírito ansiava muito por encontrar. Quis o Destino que fostes vós que topasse com um sinal daquilo que pertence à nossa sagrada Ordem, por direito, e foi o verdadeiro motivo de nossa vinda com seu pai e tios para essa região, como desterrados de nossa longínqua Faial. 

O Manezinho ouvia aquilo, entre orgulhoso de si mesmo e completamente “estupefacto” - como às vezes seu Avô dizia – pois era a confirmação de uma das muitas histórias que o bom velhinho lhe segredara tantas vezes. E o Manezão continuou.

- Meu Querido Neto Manuel... A Providência Divina nunca falha em Seus desígnios, sempre sábios e justos para uma humanidade, embora os homens e as mulheres neste mundo pouco compreendam das coisas mais profundas e sérias que temos por responsabilidade na Terra onde habitamos... 

O Menino arregala os olhos, e ouvia com as orelhas beeeeem abertas também... 

- A maldade de algumas pessoas pode trazer muita infelicidade para a humanidade inteira, e infelizmente esses a quem chamamos de Piratas já causaram muitos dissabores, até mesmo para Reis e Rainhas. 

O Bom Velho parou de falar um pouco, como se buscasse na memória uma ou outra imagem do passado distante. O Menino também, se lembrava mais ainda de seus sonhos, e eles se tornavam mais nítidos à medida que se concentrava nessas lembranças. E o Manezão continuou. 

- O Povo Português sempre foi muito trabalhador, esforçado e talentoso. Por nossa posição geográfica privilegiada com nossa saudosa Terrinha Lusitana voltada como que com seu rosto para o Grande Mar, também desde cedo se lançou ao desconhecido, enfrentando com coragem e destemor as aventuras “por mares nunca d’antes navegados” por nenhum outro povo europeu. 

- Mas também se embrenhou em muitas lutas sem sentido pelo continente europeu adentro, até ao Oriente Médio. 

O Velho Manuel parou de falar e deixou o pensamento e o sentimento navegar pelas recordações dessas passagens das quais se referiu ao Neto... E continuou depois de outra breve pausa. 

- Toda essa coragem de se lançar ao mar começou com os esforços de nosso valoroso Príncipe Navegador, que também foi Superior de nossa Bem-Amada Ordem. Também por isso que as naus portuguesas levavam estampadas em suas velas o mesmo símbolo majestoso, que nos inspira os mais justos esforços pelo bem dessa humanidade, a quem nos devotamos com os melhores pensamentos, sentimentos e ações para espalharmos a Boa Vontade e a Paz. 

E finalmente o seu Avô toca no assunto que o Menino já desconfiava... 

- Esta Moeda, Pequeno Manuel, é parte de um tesouro que foi roubado de nossa Ordem e, entre nós que fazemos parte dela, sabemos que um Pirata o escondeu aqui ao Sul, por essas bandas da Ilha de Santa Catarina, onde agora vivemos... 

Se o Menino já estava com olhos e orelhas arregalados, agora era sua boca que se abria enormemente. Então, disse: 

- Ohhhhhhhhh!... Eu bem sabia disso. Vi nos meus sonhos! E, agora, Avô, o que faremos para encontrar o tesouro inteiro? 

- Meu Neto... Todo cuidado é pouco e, temos de ser muito discretos para não atiçar a curiosidade das pessoas. Você também não deve falar sobre isso com absolutamente ninguém, pois já vos ensinei muitas coisas que pedem segredo secretíssimo! 

E advertiu o Pequeno: 

- Por ora, façamos silêncio obsequioso! E enquanto continua a fazer suas tarefas diárias com vosso Pai Joaquim, eu tratarei de outros assuntos importantes, nos preparando para receber Sua Majestade o Imperador que, em breves meses, estará visitando nossa região. Tenha muito cuidado, meu Menino, para não dar com a língua nos dentes e colocar tudo a perder! 

Como o Menino sabia que o Avô sempre falava sério, e já habituado às seríssimas observações dele, jurou de pé junto e beijando os dedos em cruz que assim guardaria tal segredo. 

Então, com essas impressões e apreensões, agradeceram à Providência Divina pelo sinal dado pela moedinha dourada, e foram animados para dormir mais um pouco, antes que o dia raiasse. 

O Pequeno Manuel caiu em sua rede e dormiu quase que imediatamente. Mas não teve sonhos... E seu Avô ficou de seu cantinho espiando o Neto, com a moeda escondida entre suas roupas, ainda fazendo algumas orações silenciosas, até que pegou no sono mais profundo. E foi ele quem teve sonhos maravilhosos nesse restinho de madrugada... 


Baú de tesouro
Fonte: https://conteudo.imguol.com.br/c/noticias/f6/2017/06/22/arca-do-tesouro-caca-ao-tesouro-bau-com-tesouro-ouro-indoor-joias-ilustrativa-1498142299380_300x300.jpg.webp

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