Arte: Leo Nogueira Paqonawta (2021)
O Menino Açoriano: algumas memórias de um espaço-tempo distante
Manuel acordava tão
cedo que, nem o galo, morador mais barulhento em seu quintal, havia começado a
cantar para saudar o Sol que dali a pouco nasceria lá longe, no mar. Ele sabia
muito bem o que deveria fazer: se levantar pulando, depressa, e correr atrás do
pai que já se preparava para o trabalho do dia. Era sempre assim, todo dia,
menos aos domingos.
Joaquim já estava na
faina de preparar os apetrechos para levar à pesca junto com outros
companheiros das redondezas. Maria já havia acendido o fogão de lenha, e
esquentava umas misturas de folhas de sua horta para acompanhar o pirão e uns
nacos de peixes, e terminar de assar uns bolinhos de mandioca para que seu marido
levasse para o dia. E cantarolava suas canções que sua própria Mãe a havia
ensinado.
Os olhos de Manuel
ainda estavam cheios de seus sonhos da noite anterior. Enquanto bocejava e
despertava aos poucos, enchia o bucho com a cumbuca de madeira que sua Mãe
havia enchido de comida até à borda. E sorria sozinho com as lembranças da
madrugada passada...
Ele se via bem no alto
de um navio bem grande, e lá embaixo muitos homens se mexendo pra lá e pra cá
puxando cordas, redes, carregando caixotes, assobiando e cantando juntos umas
canções que lhe pareciam bem familiares... Eram piratas!
Arte: Leo Nogueira Paqonawta (2021)
– Anda, Ixtepô! Tu não
vês que já quase está a amanhecer? Queres mofar como a pomba na balaia? Avia!
Depressa! Senão, nada de comida na mesa, nem para levar à Vila e aos Oficiais
da Fortaleza! Prometi ao Capitão os melhores peixes! Fique ligeiro, seu
molenga! – gritava o Pai, interrompendo de supetão os seus devaneios. E dali a
pouco já estavam puxando a canoa a caminho do mar...
Os companheiros do Pai
faziam o mesmo, e mais um pouco os homens já haviam se lançado ao mar. O Sol já
começava a aparecer, e a meninada ficou por ali espiando a cena, para depois
começar uma gritaria em torno dos achados pela areia, trazidos pelas ondas da
tempestade dos dias anteriores.
Cada qual se gabava
daquilo que encontrara, mas Manuel ficou quietinho, quietinho, guardando
escondido um objeto que descobriu, bem seguro dentro de um pequeno saco
pendurado aos ombros. E voltou ao casebre para cuidar dos bichos, ajudar a Mãe
na horta e preparar algumas coisas para a festa de Páscoa da próxima semana.
Seus olhos brilhavam, muito
mais agora do que com o que se lembrava de seus sonhos. Lá dentro do saco, algo
cintilante atiçava a sua imaginação... e ele esperaria seu Pai voltar para
revelar o seu achado.
Clássica imagem de La Pérouse.
Navegador francês,
mostra um panorama de Desterro em 1785, com a presença de uma europeia e uma
negra. Acervo Carlos Damião
O Menino
açoriano e um mistério a ser desvendado...
As brincadeiras e tarefas das Crianças
naquele dia foram muitas e, Manuel estava bem cansado e sonolento quando a
tarde já ia pelo meio e os homens voltavam do mar com o produto de suas pescas.
Ainda teriam a trabalheira de carregar
os cestos cheios de peixes, feitos de tal modo que, os ramos trançados quase
que não deixavam passar nem uma gotinha de água. Seu pai Joaquim havia
aprendido isso com os antigos habitantes da Ilha, que chamavam desde há muito
de “guaranis”.
Tais apetrechos mantinham os peixes
ainda vivos e, certamente bem frescos para a hora de cozinharem ou assarem no
fogão improvisado do casebre onde moravam. Do mesmo modo, levariam peixes
vivinhos para a Vila dos Oficiais e o respeitado Capitão.
O Menino Manuel sabia muito bem o que
fazer: penduravam balaio por balaio na parte do meio de um pedaço de pau bem
forte, e duas pessoas os carregavam, dividindo o peso. Mas, isso de carregar os
peixes de tal modo, foi o Avô dele que mostrou como fazia...
O Velho Manuel deu o mesmo nome àquele
neto que ele gostava tanto, porque via nele uma inteligência e curiosidade pela
vida bem diferente das demais Crianças das redondezas. Ele não tinha nem 50
anos e ainda era forte para o trabalho, e sabia de coisas muito interessantes
de seus estudos, e também curiosidades do que aprendeu lá nas Ilhas dos Açores.
Chegou à Ilha com o filho Joaquim ainda pequeno, e outra penca de Crianças que
tivera com sua esposa, Maria do Rosário, a Avó do pequeno Manuel.
Foi nessa lida de carregar e colocar os
peixes num laguinho salgado que o Menino Manuel teve um estalo das ideias e, ao
invés de revelar o segredo do que achara de manhãzinha para o Pai, agora
resolvera confidenciar ao Avô, considerado um Velho muito sábio ali naquela
pequena comunidade.
Mas o Menino Manuel estava tão cansado
depois do dia de trabalho, que após comer o que sua Mãe havia preparado para o
rancho de todos, deitou-se numa rede num dos cantos do casebre e, com os olhos
quase se fechando. Porém, ouvia de longe a voz do Avô contando histórias cheias
de saudades, enquanto ia como que se desligando da realidade de seu redor...
Ainda se sentia pela Ilha os calores do
verão que mal terminara, e soprava um ventinho gostoso com cheiro de mar, tão
pertinho deles. O céu bem limpo de nuvens brilhava cheio de estrelas. Manuel já
dormia, agarradinho com seu achado bem escondido, amarrado à sua cintura... e
escutava outros sons...
Gritos de terror saíam das gargantas,
misturados com a água salgada que os ventos da imensa tempestade espalhavam por
todos os lados! O navio batera num rochedo e já afundava, mastros se quebravam
e velas rodopiavam pra lá e pra cá, espatifando cabeças e esmagando os corpos
dos marinheiros que tentavam se segurar em alguma coisa, enquanto tudo
sacolejava violentamente!
O Comandante estava aterrorizado, porque
naquele minúsculo baú que tentava segurar, com todas as suas forças, existia um
tesouro que lhe compraria terras, além de um belíssimo castelo com o qual
sonhava em morar com sua bem-amada noiva em Espanha. Ele que vivia para
assaltar outros navios e roubar suas riquezas, já havia escondido outros
tesouros, espalhados em muitos lugares por onde passavam durante suas viagens
de pirataria pelos mares do Sul, do Norte, do Leste e do Oeste ao redor do
mundo que havia velejado e conhecido.
Dentro daquele bauzinho se encontravam
os mapas de onde havia escondido fortuna imensurável, além de anéis, colares,
moedas de ouro, e pedras preciosas de valor incalculável, de fazer inveja a
reis e rainhas.
O comandante teve o cuidado de fazer tal
baú com uma madeira que boiava, e não tinha nenhuma aparência que revelasse o
valor de seu conteúdo. Passaria desapercebido em qualquer lugar, como se fosse
uma caixinha de nada, de guardar troços e trecos sem importância nenhuma. Era
uma maneira de não despertar atenção, cobiça, inveja de ninguém.
Raios cortavam os céus em todas as
direções fazendo um barulho terrível, ao mesmo tempo em que o mar revolto
parecia enlouquecido numa dança de vai-e-vem macabra. Ali perto, enormes rochas
se destacavam da escuridão em meio aos relâmpagos fantasmagóricos. O naufrágio
era certo!
Um estrondo enorme se fez ouvir:
cataplan! O barco havia se rachado ao meio, depois de bater nuns rochedos para
acabar de se despedaçar todo. E o impacto fulminante fez com que os ainda
poucos mercenários acabassem por morrer estatelados nas pedras que pareciam
cuspir espuma. No meio da tempestade horrível o bauzinho precioso se desprende
das mãos do Comandante Pirata, e é levado pelas ondas que o sacolejavam para
bem longe daquele lugar sinistro...
E num pedaço do pesadelo que parecia o
final de seu sonho, o Menino Manuel via e ouvia um homem contar e anotar num
pedaço de papel, enquanto uma vela bruxuleava em meio à escuridão da cabine de
um navio que balançava suavemente. Depois, guardou o papel em uma desprezível
caixa de troços e trecos, cheias de pedras preciosas e o belíssimo camafeu de
ouro e madrepérola esculpido com o rosto de sua Bem-Amada Señora:
PLAYA DEL SUR DE LA ISLA
DE SANTA CATALINA
X
3.500 DOBRÕES DE OURO
85 SACOS DE FLORINS DE
OURO
120 SACOS DE FLORINS DE
PRATA
13.500 RÉIS DE PRATA
16.000 RÉIS DE OURO
70 QUILATES DE DIAMANTES
100 QUILATES DE SAFIRAS
30 QUILOS DE PÉROLAS
Vista da Ilha de Santa
Catarina, Nossa Senhora do Desterro, 1785.
Autor: Duché de Farney.
O Menino
açoriano no meio da noite estrelada...
“Señora Maria Leonor... Maria Leonor...
Maria Leonor”...
Como se estivesse caindo do mais alto
mastro do navio para se estatelar lá embaixo no convés, o Menino Manuel tentava
se agarrar ao que quer que fosse para evitar a queda que lhe partiria ao meio,
e sabe-se Deus em cima do que se espatifaria, tal era a confusão que a tremenda
tempestade provocava.
Tchibummmmm... Ele caiu!
O Menino Manuel acorda todo aturdido
sobre o chão de sua choupana. Havia caído de sua rede bem no meio da noite, e
todos dormiam, cada um no seu cantinho, exceto seu Avô. Com o espaço da
choupana iluminado apenas pelas brasas do fogareiro de lenha, olhou ao derredor
e se levantou para procurar o Velho Manuel.
Lá estava o Sábio Ancião, silencioso e
solitário dentro da escuridão, contemplando as estrelas e murmurando, quase
silenciosamente, suas antigas orações da infância e juventude lá pelas bandas
de uma das 9 ilhas açorianas: a saudosa Ilha Faial com sua cidadela Horta.
- Avô? – chama o Menino esfregando os
olhos do sonho e as costelas do tombo...
- Oh, Menino! Bem que te vi remexendo
muito em sua rede! Tivestes outro sonho cheio de mistérios? Conte mais este
para este velhinho que vos ama muito!
Sorrindo com confiança e dando alguns
bocejos, ambos se puseram a conversar daqueles dois sonhos. E, assim, o Menino
criava o cenário para, enfim, revelar seu achado do dia anterior.
Somente o zumzumzum dos dois era ouvido
enquanto o mar quase que lhes chegava aos pés para poder escutar tais segredos.
A noite estrelada resplendia nos céus, enquanto as 5 estrelas do Cruzeiro do
Sul piscavam, como testemunhas daqueles dois diminutos seres entabulando um
diálogo sobre a areia...
De repente, um pontinho de luz celeste
risca o céu desde acima de suas cabeças até o lado de onde o Sol nasceria dali
a pouco. Os dois Manuéis observam aquilo extasiados, depois se olham um no olho
do outro, abrem um largo sorriso e se dão num abraço apertado...
O Menino retira de sua roupa o tal
objeto, segura a mão do Avô, e nela deposita aquela coisa que cintilava como as
estrelas.
Dobrão de Ouro.
Colônia, D. João V -
Casa da Moeda de Vila Rica (Minas Gerais); 20.000 réis 1724,
letra monetária MMMM;
ouro 916,6 ‰, 53,78 gramas, Ø: 38 mm.
O Menino tremia de emoção quando
depositou na concha da mão de seu Avô aquela moeda dourada, relativamente
pesada, brilhante, reluzente. Por um instante, o Velho Manuel fechou seus dedos
sobre ela, e ficou em silêncio por mais um pouco, olhos cerrados, respiração
lenta, mas o coração batendo descompassado e forte.
O Pequeno Manuel se deixou
ficar ali, porém muito mais aflito, que de tal maneira podia se ouvir os dois
corações pulando dentro do peito, querendo saltar pela boca e se transformar em
palavras.
Foi o Velho Manuel que,
depois de um looooongo suspiro, disse algo primeiro e surpreendentemente calmo:
- Meu Neto querido,
achastes algo que meu Espírito ansiava muito por encontrar. Quis o Destino que
fostes vós que topasse com um sinal daquilo que pertence à nossa sagrada Ordem,
por direito, e foi o verdadeiro motivo de nossa vinda com seu pai e tios para
essa região, como desterrados de nossa longínqua Faial.
O Manezinho ouvia aquilo,
entre orgulhoso de si mesmo e completamente “estupefacto” - como às vezes seu
Avô dizia – pois era a confirmação de uma das muitas histórias que o bom
velhinho lhe segredara tantas vezes. E o Manezão continuou.
- Meu Querido Neto Manuel... A
Providência Divina nunca falha em Seus desígnios, sempre sábios e justos para
uma humanidade, embora os homens e as mulheres neste mundo pouco compreendam
das coisas mais profundas e sérias que temos por responsabilidade na Terra onde
habitamos...
O Menino arregala os olhos, e ouvia com
as orelhas beeeeem abertas também...
- A maldade de algumas pessoas pode
trazer muita infelicidade para a humanidade inteira, e infelizmente esses a
quem chamamos de Piratas já causaram muitos dissabores, até mesmo para Reis e
Rainhas.
O Bom Velho parou de falar um pouco,
como se buscasse na memória uma ou outra imagem do passado distante. O Menino
também, se lembrava mais ainda de seus sonhos, e eles se tornavam mais nítidos
à medida que se concentrava nessas lembranças. E o Manezão continuou.
- O Povo Português sempre foi muito
trabalhador, esforçado e talentoso. Por nossa posição geográfica privilegiada
com nossa saudosa Terrinha Lusitana voltada como que com seu rosto para o
Grande Mar, também desde cedo se lançou ao desconhecido, enfrentando com coragem
e destemor as aventuras “por mares nunca d’antes navegados” por nenhum outro
povo europeu.
- Mas também se embrenhou em muitas
lutas sem sentido pelo continente europeu adentro, até ao Oriente Médio.
O Velho Manuel parou de falar e deixou o
pensamento e o sentimento navegar pelas recordações dessas passagens das quais
se referiu ao Neto... E continuou depois de outra breve pausa.
- Toda essa coragem de se lançar ao mar
começou com os esforços de nosso valoroso Príncipe Navegador, que também foi Superior
de nossa Bem-Amada Ordem. Também por isso que as naus portuguesas levavam
estampadas em suas velas o mesmo símbolo majestoso, que nos inspira os mais
justos esforços pelo bem dessa humanidade, a quem nos devotamos com os melhores
pensamentos, sentimentos e ações para espalharmos a Boa Vontade e a Paz.
E finalmente o seu Avô toca no assunto
que o Menino já desconfiava...
- Esta Moeda, Pequeno Manuel, é parte de
um tesouro que foi roubado de nossa Ordem e, entre nós que fazemos parte dela, sabemos
que um Pirata o escondeu aqui ao Sul, por essas bandas da Ilha de Santa
Catarina, onde agora vivemos...
Se o Menino já estava com olhos e
orelhas arregalados, agora era sua boca que se abria enormemente. Então, disse:
- Ohhhhhhhhh!... Eu bem sabia disso. Vi
nos meus sonhos! E, agora, Avô, o que faremos para encontrar o tesouro inteiro?
- Meu Neto... Todo cuidado é pouco e,
temos de ser muito discretos para não atiçar a curiosidade das pessoas. Você
também não deve falar sobre isso com absolutamente ninguém, pois já vos ensinei
muitas coisas que pedem segredo secretíssimo!
E advertiu o Pequeno:
- Por ora, façamos silêncio obsequioso!
E enquanto continua a fazer suas tarefas diárias com vosso Pai Joaquim, eu
tratarei de outros assuntos importantes, nos preparando para receber Sua
Majestade o Imperador que, em breves meses, estará visitando nossa região.
Tenha muito cuidado, meu Menino, para não dar com a língua nos dentes e colocar
tudo a perder!
Como o Menino sabia que o Avô sempre
falava sério, e já habituado às seríssimas observações dele, jurou de pé junto
e beijando os dedos em cruz que assim guardaria tal segredo.
Então, com essas impressões e
apreensões, agradeceram à Providência Divina pelo sinal dado pela moedinha
dourada, e foram animados para dormir mais um pouco, antes que o dia raiasse.
O Pequeno Manuel caiu em
sua rede e dormiu quase que imediatamente. Mas não teve sonhos... E seu Avô
ficou de seu cantinho espiando o Neto, com a moeda escondida entre suas roupas,
ainda fazendo algumas orações silenciosas, até que pegou no sono mais profundo.
E foi ele quem teve sonhos maravilhosos nesse restinho de madrugada...
Baú de tesouro
Fonte: https://conteudo.imguol.com.br/c/noticias/f6/2017/06/22/arca-do-tesouro-caca-ao-tesouro-bau-com-tesouro-ouro-indoor-joias-ilustrativa-1498142299380_300x300.jpg.webp
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